segunda-feira, julho 18, 2011

O taxista

A moça corria esbaforida pelas ruas da cidade, como se tivesse perdendo a hora de viver. Porque há momentos assim na vida: escoamos pelo ralo apressadamente e não sabemos onde iremos chegar ou se haverá algum final, somente que devemos ir. Ela corria e não enxergava nada a sua volta. Suada e sua face avermelhada indicava que sua pressão arterial deveria estar no limite do corpo. E o seu corpo no limite da vida.
            Ela acenará na esquina para um táxi amarelo que passava na rua agitada e molhada, pois chovia. Para sua sorte o táxi parou. Ela correu – porque sua sina era essa -  e disse com a respiração ofegante:
- Obrigada. Não sabia mais como fazer para encontrar um táxi. Falou atropeladamente, comendo as palavras rapidamente e sem estômago para digeri-las, como se faltasse a acidez que a vida e as palavras, por vezes, necessitam para existirem. O taxista sorriu e disse:
            - Calma, senhorita. Aonde iremos?
         - Não sei. Disse ela aos prantos. Talvez para algum lugar onde haja menos escuridão ou pessoas indecisas. Engoliu o choro e pediu desculpas como quem pedisse ajuda, porque, às vezes, acontece isso: a absolvição pelo afago. O taxista olhou a moça com carinho, não com pena, ou pesar, mas com um olhar terno, como o de uma mãe ao admirar seu filho dormindo e disse:
          - Podemos esperar um pouco para a senhorita acalmar-se. Podemos conversar. Podemos desafiar o tempo, mesmo que ele urja. A vida é assim: um dia temos tudo, no outro mais nada, somente a impressão do que passou. Ou seja, o tempo passa ser uma espécie de relíquia, pois somente ele guarda na nossa memória o que nos foi importante – mesmo que isso signifique dor-. Porque a vida é como um eletrocardiograma, sabe aqueles desenhos de altos e baixos. Então... O sofrimento sempre será inevitável, basta sabermos como lidar com ele. O que lhe aflige? Perguntou ele olhando pelo retrovisor, antes de sair com o carro.
             - A vida. E uma sensação de que tudo tanto faz. Uma indiferença ao outro, a mim mesma que só me joga a uma ação: correr. Ou... Ou... Sentir-me na iminência de um ataque de miocárdio. Como se o corpo todo fosse explodir. Não falo com minha mãe há sete anos, mas para mim, na verdade, isso é um alivio. Contudo a culpa me consome. Quase não visito minha família. E as pessoas – digo, amigos- são todos descartáveis e transitórios. Tudo é finito e para mim tanto faz. Mas a indiferença me leva a mover-me apressadamente e não vejo saída. Compreende? Suplicou no olhar pela compreensão do taxista. Ele disse calmamente:
       - Podemos sair?
       - Sim.
       - Escute a aceleração do carro. Para sair do lugar precisamos engatar a primeira marcha. Sempre é assim, não? Até podemos conseguir sair na segunda, ou terceira marcha, mas o afogamento é inevitável. E na vida há coisas que são assim. Mesmo no caos há uma ordem. E nessa desordem ordenada existe uma chance de arrancada. E no caminho há alternativas, outras vias. Você não precisa passar todos os dias pelo mesmo trajeto. Sistematicamente ou pragmaticamente optamos pela mesma via e nos esquecemos de todas as possibilidades de caminhos. A indiferença talvez seja apenas um caminho. Por que insiste pelo mesmo trajeto?
       - Minha mãe está com câncer. E eu não sinto nada. Pena. Dor. Nada. Isso me faz ser um monstro? Sinto apenas a obrigação social de ter que cuidar dela. Talvez para as  pessoas não dizerem que eu seja tão má filha, mesmo eu sendo. Talvez o mesmo caminho seja fácil, porque descobrir outros demanda trabalho, paciência e vontade e eu sinto-me cansada. Outro trajeto nessa altura é uma impossibilidade, por isso corro. Disse ela enxugado as lágrimas.
         - Você corre porque é indiferente? Você corre porque não se aceita? Ou não aceita a vida?
            - Corro porque a vida tanto faz. Disse ela aos prantos. Neste momento o taxista deu uma freada brusca e ela foi jogada para frente, talvez com a esperança que na batida do seu corpo, saísse algum sentimento.
            - Desculpe-me. Machucou?  Perguntou o taxista preocupado.
            - Não. Estou bem. Na verdade até mais calma. Difícil de explicar. Quando soube da doença da minha mãe, fiquei mais preocupada com a mudança da minha rotina do que com ela propriamente dita. A minha mãe sempre foi ausente. Não sei se isso justifica algo, ou se eu quero justificar minha indiferença.  Quando eu era pequena tinha medo do escuro e ela sempre me fazia dormir no breu sozinha, dizendo que eu era covarde. Eu chorava a noite toda e ela não vinha. Ai, arrumei um jeito de tentar ficar mais calma. Fechava os olhos para ficar mais escuro e imaginava estar num labirinto a procura dela. Engraçado, eu não a encontrava. Engraçado ou triste? Até hoje não sei o limite da comédia e da tragédia.
Quando meu pai me deu a minha primeira bicicleta, ela não deixou ele colocar rodinhas extras para aparar, sempre reiterando que eu tinha que aprender sozinha. Caindo, machucando-me. Enfim, há sensações que passei sozinha demais para ter sentimentos hoje. Entende? Mesmo que eu vire a esquerda, estando acostumada virar a direita, pouca coisa muda. O taxista a encarou pelo retrovisor e disse:
             - Suas experiências na infância são únicas. Como julgar você ou sua mãe? Impossível. Refletiu o moço franzino a testa. E depois acrescentou: E se você tentasse parar de correr?
                - Já pensei nisso. Penso todos os dias. Mas se eu não agir, eu aceitarei minha condição de má filha e de mulher sem sentimentos, não? Se eu diminuir a marcha talvez seja atropelada.
           - Se você já admite isso, não prova que você é um turbilhão de emoções. Não é isso?
            - Talvez. A condição social cobra demais. Talvez. Talvez. Eu seja assim tão insegura por tantos talvez e cobranças, as quais não são minhas. Estou indo visitar a minha mãe no hospital. Mas não queria chegar lá, corria na direção oposta. Encará-la doente, debilitada seria uma espécie de vingança, a qual eu não queria sentir. Porque eu posso gostar da sensação. E ai, vem o medo de ser uma pessoa má. Essa culpa vem da educação cristã, a qual ela me submeteu. Não sei. Assusta-me olhar para o que tenho me tornado. Mas, a culpa é só um escape, porque eu não me importo na verdade. E também não sei porque estou me revelando assim para você.
          - Eu compreendo você. Muitas vezes me senti assim. Por isso me tornei taxista. Há possibilidades nesta profissão. Digo... Deixa eu pensar para dizer para você compreender o que quero comparar, hum...Eu dirijo um táxi, eu dirijo a minha vida, eu escolho os caminhos que farei, mesmo se o passageiro me informa seu destino. Sou eu que tenho o volante nas mãos. Eu que abasteço o carro, com álcool ou gasolina, dependendo do dia, das possibilidades financeiras. Enfim... Eu dou rumo à vida como ao táxi. Os passageiros são como as pessoas da minha vida. Histórias, conflitos e muita vida. Sabe, entendi que dirigir não requer somente atenção, gentileza e educação, requer algo além da vida... Algo sem complementos. E cada dia mais entendo as pontuações e as paradas do táxi. Um texto tem regras gramaticais para ser pontuado, mas necessariamente a pontuação é mais sentida, não? Assim como o andar do carro pelas ruas. Aprendi a olhar mais o outro sem julgar. Estou aprendendo a viver. Disse ele emocionado.
           - Que bonito o que você disse. E a moça desabou a chorar
         - Moça, eu nem sei seu nome. E pouco me importa qual seja. Talvez isso não seja relevante, porque sei mais de você do que os seus colegas, familiares que a denominam, não é? Fui percebendo que a indiferença e certos padrões também fazem parte da alma humana. E que se não pararmos ou diminuirmos a marca a vida somente passa. Rodar de táxi pela cidade, remeteu-me há possibilidades antes impensadas. Vejo crianças pelas ruas, pessoas apressadas, mas todos com seus sonhos, planos, compromissos e mundo interior. Olhar o outro pelo retrovisor me trouxe a vida. Eu existia, contudo não vivia. Agora o absurdo da minha existência alegra-me e triste daquela que não percebe isso.
Ela suspirou. Enxugou a lágrimas. Lá fora chovia. Talvez o mundo já chorasse o suficiente e ela não sentiu necessidade de chorar mais. A chuva embasava o vidro, ela limpava com as mãos para que pudesse enxergar além. Respirou fundo e disse:
            - Pela primeira na vida vejo sentido em algumas coisas. Gosto da sensação de que posso desembaçar meu vidro. Neste momento o telefone tocou. Era o do hospital. Sua mãe acabara de morrer. Ela engoliu seco e disse, aparentemente, sem culpa:
        - Por favor, deixe-me na funerária mais próxima. Preciso definir as coisas práticas do velório. Ela morreu e eu me sinto aliviada, sem vontade de correr. Ele a fitou com carinho. Talvez o olhar carinhoso do taxista tenha sido mais terno do que todos os da sua mãe. E isso a confortava.
        - Você está bem?
        - Sim. Estou. Obrigada.
Ela desceu do carro lentamente. A chuva engrossara, todavia não a assustava se molhar, não importava mais correr. Na chuva ela acenou para o taxista como quem agradece por uma vida inteira. E seguiu para a funerária devagar, porque agora não havia mais tempo ou pressa.

2 comentários:

Anônimo disse...

a vida não é justa com as pessoas.

El Adriano disse...

Me senti mal com seu texto, dani. Parei pra pensar e não sei o que dizer, mas te agradeço.

Acho que a janela abriu um pouco, mesmo q o vidro continue embaçado por causa da tempestade.