quarta-feira, janeiro 09, 2013

Água Viva


Penso que só a Senhorita Lispector poderia criar um livro, em forma de monólogo,  nascido de anotações de bolso – em contas ou qualquer papel que encontrava durante seus dias/noites – e com um nome tão singular: Água Viva.

A água viva é uma esfinge, ou seja, um animal misterioso e estranho: um corpo gelatinoso, com tentáculos que dançam, uma aparente fragilidade e sutileza que comove e fascina. Essa criatura que parece doce, frágil, transparente pode ser amarga, voraz, nebulosa e queimar – chegando a matar-. Um animal antagônico na essência.  A água viva para se locomover  depende da maré, porém a danada é tão rebelde que consegue  vencer sua condição de dependência marítima  e nadar lançando jato de água - livrando-se das correntes impostas pela própria natureza-. Contudo se essa criatura se encalhar na praia...irá evaporar, pois 98% de seu corpo e formado por água. Interessante, né? Evapora. E o quanto de nós evapora diuturnamente, né?

Ah! E a Senhorita Lispector compreendia belamente o animal. Só posso ter esse entendimento, pois para titular uma obra com esse nome  é por demais  significativo... Afinal as águas vivas adultas são medusas, sim... Para homenagear a criatura mitológica, a qual   tinha cobras no lugar dos cabelos e que transformava quem olhasse diretamente para ela em pedra. Lembrando que só  se pode olhar, sem riscos,  para uma medusa pela imagem refletida no espelho.


 Medusa- Caravaggio

Bem toda essa introdução para dizer que o titulo por si só explica a existência do livro: o instante; a urgência da vida e a necessidade de se enxergar, mesmo que por espelhos. E assim como a vida, o romance não possui enredo, ou história linear, há ciclos e nunca uma reta. É um texto para ser sentido e vivido intensamente. E como a ação de viver, as medusas, este livro pode ser lido livremente, do fim para o inicio, do meio para o inicio e assim nunca se esgotarão as possibilidades de leitura/vida. A medusa é um autorretrato, um misto de horror e vaidade. Todo espelho traz dor, fúria e raiva.

A narradora do livro é uma pintora que muitas vezes, durante a leitura, tive a impressão de ser a própria Clarice aos avessos. Um  monólogo que interage  com o nosso âmago; porque na pintura como na literatura – ou em outras expressões de artes – busca-se quebrar o silêncio e dizer o indizível, traduzindo respostas para todas as inquietações humanas.

A pintora busca o “ instante já”, o agora – porque é este momento que se é vivo, o resto são divagações – passado ou futuro- , mas isso não ultrapassa a criação artística.  O livro demonstra que a vida é feita de acasos.  E o acaso pode ser uma coisa – it – o pronome em inglês neutro que ela usa no texto. Alias  ela inicia o livro com este enunciado: “ Eu sou puro it que pulsava ritidamente. Mas sinto que em breve estarei pronta para falar em ele ou ela. História não te prometo aqui. Mas tem it. Quem suporta? It é mole e é ostra e é placenta. Não estou brincando pois não sou um sinônimo – sou o próprio nome. Há uma linha de aço atravessando isto tudo que te escrevo. Há o futuro. Que é hoje mesmo.”

Talvez poucas leituras na minha vida me ofereceram a oportunidade de nadar em mim...de perceber o pior e o melhor da Daniela. Um livro de beleza impar, o qual nada mais é que o reflexo de nossas inquietações. Assim como não podemos olhar diretamente nos olhos da medusa porque nos tornaremos pedras...não podemos olhar para nós porque não aguentaríamos a dor. Portanto, é necessário espelhos para refletir nossa imagem... para podermos tocar o real. Leitura para sentir e viver. 

“ O imprevisto improvisado e fatal me fascina. Já entrei contigo em comunicação tão forte que deixei de existir sendo. Você tornou-se um eu. É tão difícil falar e dizer coisas que não podem ser ditas. É tão silencioso. Como traduzir o silêncio do encontro real entre nós dois? Dificílimo contar: olhei para você fixadamente por instantes. Tais momentos são meus segredos. Houve o que se chama de comunhão perfeita. Eu chamo isto de estado agudo de felicidade. Estou terrivelmente lúcida e parece que alcanço um plano mais alto de humanidade. Ou desumanidade – o IT!
O que faço por involuntário instinto não pode ser descrito.
Que estou fazendo ao te escrever? Estou tentando fotografar o perfume.”
Água Viva – Clarice Lispector – Pág 89.

Um comentário:

@sobrecomum disse...

Adoro Clarisse e todas as coisas que ela escreveu. Era profunda e instrospectiva. Lamento não ter lido mais que dois ou três livros. É que não suportaria tanto abismo sem uma pausa para tomar fôlego.

Nunca havia feito essa reflexão a respeito da água-viva. Uma bela metáfora para o IT.