domingo, maio 02, 2010

O valor da escolha

Calor forte. O sol a pino indica que são horas de ir... Mas ir pra onde? Indagou-se Pedro. Na maioria das vezes ele não sabia que direção tomar. O que fazer? E às vezes se envergonhava disso. Mas se envergonhar do quê? A única coisa que vinha à cabeça era a sensação angustiante do calor que corroia seus órgãos internos e seus sentimentos. O sangue ferve em dias quentes; os pensamentos se atrapalham, porque, na maioria das vezes, se tem vertigens em tempos assim; e o corpo sempre parece cansado. É engraçado pensar nas propagandas de TV de verão: todos correndo, praticando esportes, sarados, mulheres de biquínis e bronzeadas. Todos perfeitos, bonitos, ricos e felizes. Mas ele não conseguia se sentir feliz no verão. Era uma felicidade tão fabricada que doía... Doía... Mas doía o quê? Nem ele sabia distinguir o que doía. Mas sabia que era algo no estômago que apertava. Sensação estranha. Como se quisesse vomitar, ou uma queimação. Às vezes sentia na garganta um gosto amargo vindo do estomago, mas não conseguia pôr pra fora; vinha e voltava. Desceu do ônibus. Calor e transporte coletivo definitivamente era o próprio inferno, se existe um. Aquelas pessoas suadas pelo trabalho, uma em cima da outra. Aquelas pessoas sem face e que não queriam dizer nada pra ele. Aquela sensação de aperto, com o calor, o deixava mais angustiado. Precisava chegar a casa e ainda preparar o almoço. Mas a fome já o abandonara no meio do caminho. Quando abriu a porta de casa, a única vontade que teve foi deitar no sofá. Desabou no sofá. E, virando a cabeça, viu uma barata morta no chão. Por que as baratas, quando morrem, têm que virar as pernas pra cima? Ser barata já deve ser tão humilhante e ainda morrer com as pernas pra cima?. Meu Deus! Sentiu uma repulsa, um certo medo e fechou os olhos. Levantou-se. Foi direto ao aparelho de CD Player; mas antes, com cuidado, pulou por sobre o inseto, para não humilhá-lo mais. Colocou um CD do Bach, que havia ganhado de um colega de trabalho (que achava musica erudita coisa de retardado). Mas, Pedro gostava. Sabia que a musica é uma companheira fiel; que quem gosta de musica nunca se sentirá só; talvez isso seja vida interior. Não são as musicas de rádio e populares que promovem isso, algo que toque a alma com delicadeza e viaje pelo nosso corpo, como o sangue, passando em todos os órgãos e nos alimentando. Pedro gostava de Bach. Assim como o compositor, perdera, a mãe aos 9 anos; e um ano, depois, o pai. Coincidência? Ele achava que sim. Pedro não vinha de uma família de músicos como Bach. Vinha de família de catadores de papel. E, diferente de Bach não queria seguir a profissão dos pais. Seus pais, antes de morrerem, viviam do lixo dos outros, para sustentar Pedro e os demais filhos. Catavam tudo o que os outros jogavam. Pedro, por um tempo também foi catador de papel, até um dia conhecer o Sr Manuel, dono de uma livraria no centro da cidade. Que se encantou com a dedicação do menino e o convidou para trabalhar em sua livraria. Algo mais digno. Mas, será? Pois ele continuava limpar a sujeira dos outros. Ele era auxiliar de serviços gerais e responsável pela limpeza e manutenção da livraria. Continuava catando o lixo dos outros, de uma forma mais requintada. Mas continuava... Voltou para o sofá e para a barata. Olhou-a mais uma vez, com pesar, como se compartilhasse da dor dela. Lembrou-se de um livro que leu, entre os que seu pai encontrara no lixo. Coisas que as pessoas não queriam mais e nem se davam conta do valor. Lembrou-se de Kafka e da metamorfose. Olhando aquela barata morta compreendeu melhor a sua obra... Veio-lhe a memória frase do escritor: “há esperanças, só não pra nós”. E chorou. Limpou as lágrimas e olhou novamente para a barata. Agora havia formigas em volta dela. Elas iriam devorá-la, fragmentá-la para poder comê-la. Assim é a vida. Não dava pra culpar as formigas. A natureza parece cruel. Levantou-se. Hora de pegar o ônibus e voltar para o trabalho. Sentiu vontade de não ir. Sentiu vontade de antes de terminar como a barata, poder realmente viver. Mas, sabia que sua escolha ali poderia ser definitiva. Tinha noção da 3 Lei de Newton. E sabia que deveria ser responsável. A tristeza o invadira, porque sabia que nada iria mudar. Foi ao banheiro lavar o rosto para poder ir trabalhar. A sensação que tinha é que, no fundo, a vida toda não tivera escolha. Talvez haja pessoas que não têm chance de escolher, e vivem a vontade, a escolha dos outros. Tal sentimento o indignou. E decidiu, uma vez na vida, escolher: ficar em casa. Voltou ao sofá e à barata. Sentiu uma paz incompreensível. E dormiu. Daniela Bueno

TRILHA SONORA DO DIA - Bach - Brandenburg Concertos No.3 - i: Allegro Moderato 

4 comentários:

Anônimo disse...

Daninha,

Seu texto é muito reflexivo p meu cabeção. Mas, gosto de passar por aqui. Seu catinho é bem agradável, como vc!
Parabéns pelo blog.
bjos
Dado

William Lima disse...

Daniii
ta dormindo com as baratas agora? huaha
brincadeira
adorei seu texto (pra variar!)
até que ponto podemos realmente fazer as escolhas da nossa vida? o que é liberdade?
bjos

Anônimo disse...

Caríssima
Só pra te avisar que entrei no seu blog e achei um local para fazer comentários. No momento, nenhum comentário rs Bjo
Eduardo

Girassol disse...

Eduardo, Vindo de vc e não tendo comentários...ufa! Então tá tudo bem. rsss Que bom q vc tá passando por aqui. :) Obrigada, meu amigo!
Will, eu não durmo como as baratas, mas, às vezes, confesso q me sinto uma personagem de Kafka, quase um greg ao acordar. rss
Dado, vc é um cabeçao mesmo. rsss Obrigada pelo carinho.
Adoro vcs! bjos