Era véspera de natal. Era 9h. O sol brilhava forte. Sinais do verão no hemisfério sul. Como todo ano estávamos indo para a fazendo do meu avô. Sempre a mesma coisa. Os mesmos rituais. A família reunida. A ceia sempre farta. As bebidas. As brigas, após bebedeira. As conversas e comentários de canto. Como em qualquer família existiam sempre as famosas rixas entre primos, irmãos e cunhadas. Nada é tão perfeito quando parece...
Chegamos à fazenda por volta das 9h45. Aquele alvoroço pela nossa chegada. Malas jogadas, gritarias, abraços e beijos. Meu avô e meus primos vieram ao meu encontro e logo me convocaram para uma missão: ir ao chiqueiro escolher nossa ceia. Achei aquilo estranho, mas bem... Fui!
Chegando lá havia vários porquinhos, ainda pequenos e uma porca grande que mais parecia à mãe de todos. Meu avô disse num tom heróico:
-Agora é hora de escolher nosso porco! O que vocês sugerem? Perguntou pra nós.
Os primos gritaram:
-A mais gorda e grande. Eu fiquei estático e disse:
- Mas Vovô... Ela é a mãe.
E meu avô disse com ironia.
- Que isso menino! Eles nem sabe o que é isso. Ta ficando doido. Acho que a cidade grande ta fazendo mal a você. Vou conversar com sua mãe sobre isso.
Pela primeira vez na minha vida me dei conta que a ceia de natal não era tão cristã assim... Como matar alguém e não se importar com sua dor e sofrimento? Porque um animal é alguém. Uma vida. E segundo o cristianismo toda forma de vida é digna. Minha cabeça se confundiu. Os valores me pareceram trocados. Se existisse uma época para poupar algumas vidas, esta seria o natal, não? Mas, o amor e a piedade transformam-se em sangue. O que é o natal afinal? Indagou-se.
Meu avô entrou no chiqueiro sem qualquer sinal de piedade. E sem pedir licença foi apalpando as partes intimas da porca, inclusive suas tetas, que por sinal estavam inchadas, talvez porque ela ainda estivesse amamentando. A porca parecia saber seu destino. Abaixou-se e sem relutar muito se entregou. Parecia algo materno. Dar a vida pelos seus filhos.
Aquilo me comoveu. E eu disse mais uma vez.
-Vovô, realmente precisamos matar para festejar?
Meu avô sorriu e disse:
- O que está havendo? Meu neto é maricas?
E saiu pisando duro. Fora chamar os empregados para levarem a porca para o abatedouro. O local onde os bichos são assassinados. Sem direito a funeral e a despedidas. E disse em tom forte:
-Você ira me ajudar a matar o bicho.
Eu fiquei sem ação. Não respondi. E permaneci parado, imóvel, não conseguia nem piscar. A porca num ritual de despedida afagou seus filhotes. Num momento afetuoso que provavelmente eles não compreenderiam. Para falar de amor é preciso sentir... E para sentir é preciso ter compaixão e respeito. Como falar de Cristo, sem ter piedade? Que contradição. Minha cabeça doía. Meu peito apertava. E olhava para a cena e comecei a chorar.
Meu avô se aproximou com os seus comparsas neste crime. Entraram no chiqueiro e começaram a correr atrás da porca. Ela correu e gritou. Tentou lutar um pouco pela vida. Mas sentiu o inevitável... E se entregou aos seus assassinos.
A porca gritava. Os seus gritos violentava o que eu tinha de mais humano. Engraçado! Até então nunca havia olhado o outro lado. Será que na vida é sempre assim?
Saíram com a porca. Arrancaram-na a força de seu ambiente. Dilaceram sua dignidade.
Violaram todos os direitos possíveis. Dois homens a carregavam. Um deles a segurava pelas patas dianteiras e o outro pelas traseiras. A porca se debatia. Gritava como que se pedisse um milagre.
Aquela cena me chocou. Não entendia o alvoroço dos meus primos. Gritando, doidos como se tivessem conquistado um grande premio.
Todos correram para o abatedouro. Eu permaneci imóvel. Olhando os porquinhos no chiqueiro. E imaginando que no próximo ano seria um deles.
Meu avô me gritou do abatedouro. Convocando-me para a sessão de tortura.
Meu avô disse:
-Quero que você me ajude a matar o bicho.
Eu respondi num tom angustiado. Pra dentro. Engolindo seco.
-Por que matar o bicho? É natal. Natal é tempo de piedade. De integração das espécies. Eu não vou matar nada.
Ninguém parecia entender meu discurso. Cansei-me. E sai para não presenciar aquele ato. Mas de certa forma fora cúmplice, porque não fiz nada pra impedir a morte da porca.
Todos riram das minhas palavras e continuaram a matança...
À noite, na hora da ceia. O acontecido foi a noticia e a discussão do dia. Meus primos contando o ato covarde, de matarem o bicho, como se fossem heróis. E os seus pais aplaudindo. Riram de mim. Comentaram minha atitude, zombaram mais uma vez e começaram a comer.
Eu não tinha fome. Entendi muitas coisas naquela ceia de natal .
Minha família continuou rindo e devorando a porca. E depois fizeram uma oração de agradecimento à vida e a Deus. Eu chorei e me retirei da mesa. E eles continuaram a brindar o natal.
TRILHA SONORA DO DIA - Chico Buarque - O Que Será (À Flor da Pele)
2 comentários:
Defensora dos fracos e oprimidos. Sempre. Lisa Simpson. rs
Adoro vc!
Junior
Daniii
belo texto, mocinha!!!
mas não vou me sentir culpado pela feijoada de ontem rs
bjokas
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