quinta-feira, janeiro 19, 2012

As cartas

Maria Clara estava parada no portão, mexendo nas mãos freneticamente. A ansiedade era visível. Estava vermelha, com as mãos suando e o coração impaciente. Quando avistou o carteiro saiu correndo em sua direção e deu um grito angustiante, aquele preso dentro do peito.
-Tem algo pra mim? Disse esbaforida.
O carteiro olhou com um olhar terno, pois nos seis últimos anos era assim.
Ela continuava a correr e repetiu:
- Tem algo pra mim?
Ele sorriu e com piedade de sua ansiedade disse:
-Vamos procurar. Maria Clara?
-Machado! Ela completou seu nome, antes que ele pudesse completar a frase.
-Rua das cores...
- Número 155. Disse ela com um suspiro forte, interropendo o carteiro mais uma vez.
Ele sorriu. E com paciência. Disse:
-Tem sim. Uma carta. Correspondência internacional.
-Ai, meu Deus! Disse a menina com a face mais vermelha e com o coração na boca. Ela deu um beijo no carteiro, tomou-lhe a carta, antes mesmo que ele a entregasse e saiu correndo.
O carteiro sorriu. E disse:
- Bom dia, Maria Clara.
- Eu terei... E o senhor me ajudou. Olhando pra trás, acenando as mãos e enviando beijos. Chegou a casa com a língua para fora. Sentou-se no sofá e abriu a carta desesperadamente. Era dele. Era de João Pedro.
Maria Clara conhecerá João Pedro, há seis anos atrás, na bienal do livro em São Paulo. Foi um encontro inusitado. Casual. Que não tinha muitas promessas. Maria Clara era de uma pequena cidade do interior de São Paulo chamada Tupã. Nome de tribo indígena. Talvez o espírito guerreiro da menina venha daí. Ela era sonhadora, idealista, sempre com idéias de mudar o mundo e aspirante a roteirista de cinema. João Pedro era português de Lisboa. Estava de férias no Brasil e justo naquele dia resolveu ir a bienal do livro.  Eles se olharam. Os olhos não se desviaram mais. Não tinha como sair dali sem conversarem. Afinal olhos que não se desviam são raros hoje em dia. João Pedro se aproximou e disse:
- Olá.
Ela sorriu e disse:
- Oi. Como vai? Gostando da bienal? Não está tudo lindo aqui?
A principio ele ficou assustado com tantas perguntas. Mas depois, achou natural. Características de uma mulher autêntica.
-Eu estou bem e você? Sim adoro livros.  Sim, tudo está lindo. E tu?
-Eu estou ótima. Sabe é a primeira vez que venho a São Paulo e estou adorando. Quero ser roteirista de cinema. E adoro ler também.  Você mora aqui?
Ele sorriu com tanto fôlego que a garota tinha. E se encantou com tanta espontaneidade e respondeu:
- Eu não sou daqui. Estou de férias. Sou de Portugal.  Mas, gosto do Brasil.
Ela arregalou os olhos e pela primeira vez no dialogo estava sem fala.
-O que foi? Indagou ele.
-Portugal é tão longe. É depois do Oceano Atlântico. É o pais do Saramago e do Fernando.
Ele soltou uma gargalhada e disse sorrindo:
- Sim. É longe.  Tu pareces bem intima desses escritores? Tu aceitas beber um café comigo?
-Claro! Seria um prazer. Sou. Disse num suspiro. Bem intima.
Durante duas horas conversaram sobre sonhos, vida, filosofia, amor, filhos, planos para o futuro e literatura. Estava dando o horário do ônibus de Maria Clara e ele disse:
- Tu tens endereço eletrônico ou telefone?
- Sim. Mas prefiro cartas convencionais. Acho mais nostálgico, romântico e pessoal. As correspondências têm odores, a caligrafia e até o gosto da pessoa. Reflete comigo: pra escrever uma carta é preciso coragem. E não pode ser pra qualquer um.  O ritual é cheio de etapas: escolher o papel, a caneta, o local pra escrever e até a música que será trilha sonora da carta.  Quando leio uma carta sinto a pessoa que escreveu ao meu lado. Como se estivesse me narrando o fato, compreende? Gosto de telefone também. Mas as cartas nos revelam por inteiro.
Ele sorriu impressionado.
- Nossa! Eu nunca havia pensado por este lado. Tu és maravilhosa.
Ela sorriu.
Trocaram endereços e telefones.
Ele a acompanhou até seu ônibus. Ela viera a São Paulo com ônibus fretado só para a Bienal e era hora de partir. O adeus foi o começo de tudo. O motorista faz a última chamada. Eles demoram a se afastar. Não dizem nada, apenas sentem o coração apertado.  Tão pouco tempo juntos e tantas emoções. Se bem que emoções não são para ser medidas. Maria Clara esconde levemente o rosto. Ela entra no ônibus. Da janela, faz acenos, manda beijos. Os olhos pedem pra ficar juntos. Pra sempre. Mas o ronco do motor foi implacável e, aos poucos, foram se afastando.
Quando o conheceu Maria Clara tinha vinte quatro anos. Era uma garota inquieta, ansiosa e romântica. Ele contava com vinte e nove anos. Era tímido e discreto. Chegando a casa a primeira coisa que Maria Clara fez foi escrever. E escreveu quase a noite toda. Assim começaram as trocas de cartas. Primeiro começou com a descrição da sensação de se conhecerem, da emoção da despedida, depois passou a ser um diário. E quando perceberam estavam completamente envolvidos. O amor foi brotando. A necessidade física transcendia o tempo e a distancia. Até hoje. Passaram-se seis anos do primeiro encontro e nunca mais se viram. Nas cartas sempre havia promessa de um  reencontro. Promessa de uma vida em comum. O amor crescia e a esperança também.
Maria Clara abrira uma livraria em sua cidade natal. A carreira de roteirista não dera certo. Agora era uma empresária. Empresária da intelectualidade daquela pequena cidade.  Mas, quando esperava as cartas dele, se portava como garotinha. Era como se isso lhe desse mais  vida. Ele lhe dava fôlego e coragem. Maria Clara tinha alguns casos. Mas, nada sério. Ela sabia que o coração estava habitado. E não queria que fosse diferente.
Receber as cartas dele era a certeza de que o amor existia. Era uma esperança tola. Mas ela gostava de ter essa sensação. Que alguém em algum lugar era como ela. Isto lhe dava um alivio e uma certeza de que viver valia a pena.
João Pedro lhe escrevia toda semana. E duas ou três vezes por semana lhe telefonava. Estar distantes para eles era uma questão física apenas. Pois, no pensamento eles estavam próximos.
Porém, algo atípico seguiu na semana posterior a cena do carteiro. João Pedro não escreveu na próxima semana e nem na outra. Maria Clara estava com um nó na garganta. Suas cartas não eram respondidas e o telefone de João Pedro não atendia. Até que no mês seguinte recebeu uma carta fria e curta dizendo assim:

Querida Maria Clara,

Nós precisamos achar nosso rumo. Eu não estou agüentando mais isso. E não tenho coragem de me arriscar por ti. Adeus, J.P.
Ps: Por favor, não me procure mais.
Maria Clara relera a carta em forma de bilhetes dezenas de vezes, tentando encontrar algo nas entrelinhas. Mas não encontrou. Chorou. Morreu por alguns instantes. Renasceu. Sofreu. Mas decidiu respeitar. E guardou as lembranças.
Passaram-se seis meses. Maria Clara estava refeita. Ela tinha o poder de se renovar muito rápido.  O telefone tocou de madrugada. Ela achou estranho, mas levantou para atender.  Era ele. Ele disse que estava em São Paulo. Que tinha se casado, mas queria revê-la. Disse o horário e o dia do seu embarque. Ela desligou sem dizer uma palavra. Sentiu seu coração bater descompassado. Mas tinha uma certeza: Precisava rever aquele homem.
Maria Clara era daquele tipo de mulher entregue a paixões, intensa e extremamente sensível. Os sentimentos sempre a dominaram. Agora não seria diferente. Quando percebeu já estava fazendo as malas para esperá-lo no aeroporto. Para esperá-lo partir.  Ela precisava disso. Ela queria isso.
Precisava chegar logo à plataforma de embarque. Já era 9h.  Ela estava atrasada. Aliás, pontualidade nunca fora uma qualidade dela. Mesmo sabendo que as horas seriam as últimas. Viu-se numa cena de cinema, perdida entre tanta gente. Estranhos observavam o olhar ansioso, às vezes perdido. Com um discreto vestido amarelo, não sabia onde colocar as mãos.  Não ouvia nada e quase foi atropelada por um carrinho de malas.
Na escada rolante, avistou João Pedro. Sorriu, apertou as mãos, torceu pra que ele a percebesse. Emocionada, chorava. Maria Clara percebeu os olhos dele tristes: de uma mistura de alegria, dor e desalento.
Colocou a mão no rosto, quase em desespero. Reviu cenas daquela paixão. Do encontro casual na bienal, o café, o beijo que não aconteceu, a cartas e as promessas.
-Oi. Ela disse.
-Olá. Pensei que tu não viesses mais. Eu estava ansioso. Quase em desespero.
- Na verdade pensei em desistir, mas não poderia...
- Você está bonita. Tão bonita.
-Você que é gentil.
-Por que tem que ser assim? Suplicou ela.
-Não sei. Mas é.
Ela chorou. Ele também.
-Eu amei você,  Maria Clara. Eu amo você. E acredito que vou amá-la para sempre. Mas, não pode ser mais...
- Por quê? Ela o indagou aos prantos.
-Porque eu me casei. Sou feliz de certa forma. Estou calmo. Você me deixava infeliz e inquieto. Prefiro  ter esta sensação que sinto agora. Para ficar com você iria precisar abrir mão de coisas que não estava disposto, por falta de coragem. Eu não sou como tu, menina.
 Ela chorou mais. E em soluços disse:
- Você tem razão. Eu quero mais.
-Tu mereces mais. Mais que a vida, que tudo. Tu mereces tudo, Maria Clara!
Ela se irritava porque apesar de tudo não conseguia detestá-lo.
-Eu preciso ir. Disse ela com a voz  para dentro.
-Está tudo bem. Eu só queria ver como tu estavas , minha menina. E como ainda era linda.
Ele se aproximou e beijou-lhe a face. Ele tremia.
Ela avermelhou-se e disse:
-Adeus, então. Você já viu como eu estava.
-Já. E queria mais.
- Então por que não larga tudo e fica comigo?
-Porque o tempo passou. O tempo é nosso pior inimigo. Deixei passar. Tu me escapaste pelas mãos.
Com um olhar terno ele lhe diz adeus. E caminha em direção ao portão de embarque. Ela chora descompassadamente. Grita internamente. E em alguns momentos daquele encontro desejou a morte. Mas, ela esperou parada no mesmo lugar, até não poder mais avistá-lo. E foi pra casa  com uma sensação antagônica de alivio e dor. Pois, apesar da perda, ele tinha lhe proporcionado as melhores emoções de sua vida. Sorriu...
Trilha sonora do conto - Please Mr. Postaman

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