O filme Linha de Passe do diretor Walter Salles conta a história de uma família de quatro irmãos, tendo como chefe do lar: a mãe. Os cinco vivem driblando as dificuldades diárias e almejando a um futuro melhor. A família vive na Cidade Líder, periferia de São Paulo. Com a ausência do pai, precisam lutar por seus objetivos. Reginaldo (Kaique de Jesus Santos), o mais novo, procura obstinadamente seu pai que nunca conheceu. Dario (Vinícius de Oliveira), prestes a completar 18 anos, sonha com uma carreira como jogador de futebol profissional. Dinho (José Geraldo Rodrigues), frentista em um posto de gasolina, busca na religião o refúgio para um passado obscuro. Dênis (João Baldasserini), o irmão mais velho, já é pai de um filho e ganha a vida como motoboy . No centro desta família está Cleuza (Sandra Corveloni), que, aos 42 anos, está grávida do quinto filho de pai desconhecido. Ou seja, é um retrato de muitas famílias brasileiras, as quais não enxergamos, talvez, por certo comodismo social.
A ausência paterna é um tema presente na obra, pois os três primeiros irmãos são filhos do mesmo pai, mas o quarto é de um homem negro, que desconhece. E o quinto, a caminho, a paternidade também é uma incógnita. Todos os meninos são criados pela mãe - Cleuza- que representa no filme as inúmeras mulheres que assumem o papel de pai e mãe dos filhos, pela a ausência paterna. Apesar das dificuldades diárias, Cleuza sempre se faz presente na vida dos filhos. E isso é uma característica que quebra preconceitos sociais, visto que a impressão social que se tem de uma mulher: empregada doméstica, com muitos filhos, sozinha é que a educação sempre está a desejar, devido à falta de tempo, dinheiro, entre outros fatores. E Cleuza mostra com maestria no filme que isso é falso. Que apesar das mazelas ela consegue ser uma boa mãe.
O fato é que as fronteiras entre a realidade e a ficção no filme Linha de Passe são tão estreitas que o filme reflete derrotas, sonhos, realizações, esperança, angustias, injustiças, enlaçando o real com o imaginário. Isto é o que torna Linha de Passe tão notável e uma obra de arte aberta a muitas interpretações.
A sensibilidade do filme Linha de Passe pode ser percebida a partir da coexistência entre a realidade e a ficção( característica do cinema neo-realista). O filme é permeado das vozes sociais (intertextualidade), e traça um diálogo permanente com a realidade. Esta se confunde com a ficção trazendo ao filme uma forma de humanização das personagens sem precedentes, a qual dilacera o coração dos espectadores e o sensibiliza acerca de muitos assuntos e tenta, até mesmo, quebrar preconceitos: como a questão religiosa, futebol, retrata a vida de uma empregada doméstica e suas dificuldades e também a luta diária dos motoboys, que são vistos como desordeiros pelos motoristas de São Paulo.
O começo do filme mostra Cleuza sentada na cama, aparentando estar tendo contrações do parto, o rosto saudoso, colérico e melancólico de Cleuza nos leva a um instante de dor muito real. A cena é cortada entrando em seqüência imagens do jogo de futebol entre São Paulo e Corinthians – Cleuza é torcedora fanática do Corinthians – entre a efervescência da torcida, a imagem é cortada e entra os motoboys percorrendo a cidade, numa São Paulo bem agitada, voltando à imagem para o jogo que representa emoção, palmas e felicidade momentânea, cortando novamente e entrando com o pequeno Reginaldo dentro do ônibus pelas ruas de São Paulo, retornando para o jogo num momento tenso, onde Rogério Ceni – goleiro e batedor de falta do São Paulo – baterá uma falta contra o Corinthians, os torcedores parecem angustiados, erguem as mãos e começam a orar, esta cena se mistura com a do culto evangélico, é uma passagem sutil, que dá a impressão de fusão. A cena retorna ao jogo e ao momento de alívio, pois o goleiro salva o Corinthians, a impressão que nos dá é que a mistura da religião e de futebol de certa forma nos alivia a alma.
A cena retorna a euforia da torcida corintiana entrelaçando-se com as imagens do jogo de Dario, que está participando de mais uma peneira. As imagens dos dois jogos se confundem, proporcionando a impressão de que uma imagem é extensão da outra e que não são fatos isolados. Remetendo a idéia de que apesar de cada um das cinco personagens possuir sua historia individual, todas estas historias se cruzam e uma passa ser extensão da outra, revelando metaforicamente uma união entre os membros da família.
O diálogo entre as imagens reforça o dialogo entre os discursos, estas vozes são o que enriquecem o filme lhe oferecendo um caráter artístico, o qual comove o espectador a cada cena.
A gênese do filme traz a idéia de movimento e num jogo de futebol o que mais há é movimentação, o objetivo desse jogo é o gol, e enquanto ele não acontece a angustia, o sofrimento fere os nossos corações. Assim, acontece com as personagens do filme Linha de Passe e com todo seu enredo, pois o filme é como um jogo de futebol, sempre uma grande espera: espera que a situação das personagens melhore, esperança de dias melhores, porém o gol nunca acontece, apesar dos passes bonitos, dos lances bem feitos. Mas, as personagens não desistem e vão traçando suas historias, assim como os atacantes do jogo vão avançando na grande área em busca do gol. A sensação que nos habita juntamente com a mensagem final do filme “ande ”é a de que tudo está aberto nesta obra para entendimento, e que, talvez, outro jogo recomece a qualquer momento, e que o grito entalado de gol pode se libertar. É um filme que vale muito a pena ver, aproveitando a época da copa do mundo e abrindo o coração para uma obra totalmente aberta e para a espera do tão sonhado gol.
Nota: Sandra Corveloni foi consagrada, em 2008, no Festival de Cannes: Melhor Interpretação Feminina - por Linha de Passe.
TRAILER DO FILME: http://www.youtube.com/watch?v=htb3pX-6CVA
2 comentários:
Senhorita Dani,
Vc escreve como se estivesse fotografando. Perfeito.
Quero ver o filme.
Suas colocaçoes me fizeram estar no filme, sem nunca ter visto ouvido falar dele. Vc é genial!
Obrigada, minha amiga cult!
Adoro tanto vc!
bjo do Júnior
Linda análise do filme. Muito de teorias de intertextualidade, dialogismo, uma excelente descrição de cenas (não vi o filme, mas ele deve ser tão bom vendo quanto lendo vc escrevendo sobre ele) e termina com Umberto Eco, quando fala do filme como obra aberta.
É pra quem pode, né?!
bjokas
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