sábado, junho 19, 2010

E agora, José? Como ficará o mundo sem você?

“O velho comunista se aliançou ao rubro do rubor do meu amor”
O mundo acordou mais triste ontem, sem cor e esperanças. Numa sexta-feira gelada- pelo menos no meu coração e no hemisfério sul da Terra-(18/06/2010) morreu José Saramago, o homem que subverteu a língua portuguesa e que ousou a dizer não ao ponto final e aos sistemas engessados da gramática. O homem que abriu possibilidades para língua e para vida, o amante de Fernando Pessoa, o ateu convicto (que mais amor demonstrou ao mundo que qualquer cristão que conheci em toda vida), o grande defensor dos Palestinos, tornando-se até persona non grata em Israel por conta de seu ativismo a causa palestina. O homem que lutou e denunciou em suas obras as mazelas sociais do mundo e o problema existencial humano, revelando um homem frágil, covarde e sem máscaras. O velho comunista, apaixonado pelo marxismo, corajoso que gritava aos quatro cantos a desigualdade social, sendo feroz defensor dos direitos humanos: realmente um humanista! Saramago foi a minha maior referência para construção de valores pessoais, seja na ideologia de esquerda, na poesia, na vida e na academia. Esse comunista me ensinou a ser uma pessoa melhor, mais tolerante e, principalmente, respeitar a vida, as diferenças e os outros. 

Aprendi a amar Saramago um pouco cedo. Minha primeira leitura foi Memorial de um convento, acho que eu tinha uns 14 anos. Eu ainda era adolescente, mas confesso que acho uma leitura densa para tal idade, contudo foi ai, exatamente ai que o “conheci” e todo o meu amor e admiração foram lhe dado. Daquele dia em diante algo mudou na minha alma e coração. Sempre tive tendências políticas de esquerda, mas depois dele isso foi se enraizando na minha anatomia e em todas minhas veias e artérias: era algo até meio genético, inexplicável e de difícil tradução. Não tinha mais como fugir disso e nem dos seus livros. Era o inicio de uma nova Daniela. Afinal é isso que a grande arte nos proporciona: reflexão e mudança. 

Saramago cumpriu seu papel enquanto vivo e nos deixou uma obra rica e lindíssima com 16 romances publicados, peças teatrais, artigos para jornais e nos últimos anos, apesar de não gostar muito da linguagem rápida dos blogs e da internet, aderiu a blogosfera, nos presenteando com crônicas, artigos e muita poesia e reflexão. Saramago era autodidata e dizia que o homem mais sábio que conheceu na vida era analfabeto, seu avô! O qual ele dedicou seu Premio Nobel de literatura(1997). Premio este que nunca o seduziu ele sempre se manteve consciente que isto não passava de uma homenagem e sempre dizia em suas entrevista que tinha o Nobel mas e daí? O que isso mudaria. Saramago era lúcido. 

O Homem de Lanzorate(Ilhas Canárias) que ao acordar olhava de frente para África e que nunca se calou diante das barbáries do mundo. O homem apaixonado por Pilar Del Rio, que em muito dos seus livros aclamou este amor com profundo romantismo e dedicação. Darwinista e encarava a morte como um processo natural da vida. Sempre dizia que a natureza era finita e que todo ciclo tinha seu fim e que a morte não passava de uma invenção de Deus ou das religiões para dominar a sociedade. Acredito, que ele se preparava para a morte e que partiu da forma que queria. Não oremos por ele, vamos respeitar seu ateísmo, vamos apenas silenciar-nos e homenageá-lo pelas letras, assim ele gostaria de ser lembrado. E será para sempre.
Além de um grande intelectual e escritor, o mundo perdeu um grande ativista dos direitos humanos. Do ponto vista social ou político, é mais uma voz que se vai e que nos deixa órfãos de ideologia, pois era uma das raras vozes que combatia ainda as ideias ultra liberais dominantes no mundo. 

A sua morte entristece-me. Cheguei comentar com meu irmão, ontem, que tinha a sensação que uma pessoa muito próxima tinha partido e ele me disse que também se sentia estranho, acredito que muitos pelo mundo se sentiram assim: em desespero. Sentia-me inconsolável. Chorei quase o dia todo. E o coração apertado, afinal de contas ele foi minha inspiração por mais de 15 anos. E uma vez tendo lido toda a sua obra, não terei mais a esperança de ver um livro novo do velho comunista nas livrarias. A ideia de não ter mais seus livros dilacera meu coração todo vermelho. Era sempre uma espera ansiosa. Agora, fica a sensação de que uma obra se interrompeu no meio...Saramago mais vivo que nunca na rede! 

Comentários para ler Saramago: 

Para ler Saramago é necessário despir-se de preconceitos, do conservadorismo e estar aberto ao novo. Pois, sua estética é inovadora e pode assustar leitores resistentes à mudança. Ele quase não usa letras maiúsculas, a pontuação é aberta, quase nunca finaliza uma idéia ( propositalmente, pois no fundo não há idéia finalizada), os diálogos são seguidos, sem travessões. É uma leitura para se fazer com tempo, não rapidamente. O texto do Saramago é recheado de intertextualidade, o que nos faz querer descobrir outros textos, autores e o mundo. E talvez, por ser cheio deste dialogismo( aqui como sinônimo de intertexto) são considerados difíceis. Mas, a apaixonada leitora aqui recomenda muito a leitura. Não citarei uma obra, citarei toda sua obra. 

Nota final: Ontem, uma ex-colega de trabalho enviou-me um recado no facebook(rede social), dizendo que se lembrou de mim quando leu que Saramago havia morrido e que se lembrava que em minha mesa de trabalho sempre tinha um livro dele. Eu chorei quando li a mensagem, pois era assim mesmo. 
TRILHA SONORA DO DIA:  O SILÊNCIO! 

5 comentários:

Artus Rocha disse...

Maravilhoso seu texto linda!
É sempre muito bom acompanhar seu blog.
Espero que esteja mais animada hoje, estava tão triste ontem.
Beijos!!!

Juliana disse...

lindo texto dani
transparece toda a sua admiração por esse homem que, de fato, merecia toda a admiração do mundo!
bjo no seu coração, e que ele se recupe, mesmo estando tão machucado.

Anônimo disse...

Senhorita Daninha,

Eu sei o quanto este homem te influenciou e o quanto vc gostava dele. Sei mesmo. Compartilho tua dor, minha querida!
Seu texto é lindo e expressa tudo mesmo o vc sempre achou dele. Vc é maravilhosa, conheço poucas pessoas que escrevem tão bem como vc. Vc usa a alma e se torna deliciosa p ler.
Te adoro e adoro teu blog.
Bjoss do Júnior

William Lima disse...

O silêncio. É o que a morte representa? Ou é ele que representa a morte neste momento?
O silêncio do escritor, do artista, do ativista... Do humanista.
Dani, a morte não é o silêncio, não o definitivo: ele poderá não mais falar daqui em diante, mas o que ele disse já está dito, escrito... E isso servirá pra sempre. O que a gente escreve pode ser relido. Não silêncio se há a palavra - e esse vai ser seu conforto quando quiser ler saramago. Assim como temos os filmes gravados dos nossos atores favoritos, ou os CDs dos nossos cantores prediletos.
Há uma tristeza por não poder ouvir, ou ler, o que diria ele neste ou naquela nova situação. Entretanto, você sabe tudo o que ele disse ou escreveu anteriormente, e talvez possa aplicar a essa novo momento: Saramago diria que...
Esse silêncio é um símbolo: indica sua tristeza - mas não indica o fim do que produziu Saramago, ele ainda está vivo nas páginas dos seus livros...

Anônimo disse...

Excelente, Daniela. Quem me transmitiu o DNA de Saramago foi minha mãe, hoje com 82 anos, que lê e fala dele desde os anos 80. Considero Saramago alguém que reafirma o tempo todo o senso socialista, a vontade de transformar essa sociedade injusta sem nunca se tornar dogmático nem panfletário. Eu tenho orgulho dele ser comunista e ateu do mesmo modo que ele. Ainda falta ler muitos livros dele, dentre os que li, tive grande impacto com O Evangelho... Caim, Ensaio sobre a cegueira e Sobre a lucidez, Viagem do Elefante. Saramago faz parte da minha vida, me ajudou a ser muito melhor e creio que ajudou toda humanidade a ser um pouco melhor, mais lúcida e mais justa. Parabéns Daniela pela sua matéria. Abraços Carlinhos www.twitter.com/cgumes