Cabe a todos que se deliciavam com a literatura de Saramago e com suas aparições públicas não deixarem que a máquina midiática tente apagar o mais importante do que ele legou à humanidade: a luta obstinada pela razão esclarecida.
Luís Carlos Lopes
O falecimento de um grande autor como Saramago faz pensar sobre o que é mais importante em sua obra. A afirmação internacional da língua portuguesa como uma língua de cultura salta imediatamente à vista. Os lusofalantes devem a ele a cristalização atual da idéia de que existe um idioma ocidental tão rico como os que hegemonizam a fala e a escrita do tempo presente. O romancista deu visibilidade e prestígio cultural ao seu idioma e de outros mais de duzentos milhões de seres humanos que navegam no mesmo cotidianamente.
O autor teve a felicidade de mostrar que era possível fazer literatura sem abandonar a crítica, isto é, sem escapar do exame da realidade objetiva. Registrou histórias de vida protagonizadas na língua portuguesa. Estas foram sempre universais e, quase sempre, contemporâneas, brindando seus leitores com o exame dos valores e crenças de seu povo. A bem-sucedida transcrição cinematográfica do livro “Ensaio sobre a cegueira”, falado em inglês e ambientado longe de Lisboa, é uma prova da universalidade dos problemas tratados por Saramago.
Os mais diversos percursos do autor estão gravados em seus romances. Neles, também estão, como em qualquer bom autor, suas preocupações políticas e filosóficas. Seu estilo é único, ‘pessoal’, de escrever como se tivesse martelando idéias e situações na cabeça de seus leitores. Sua escrita foi fartamente complementada pelas suas entrevistas e outras aparições públicas sempre serenas, cuidadosas e, não raro, mordazes.
O fato do sistema político-cultural o ter transformado em ‘persona midiática’ não lhe fez crescer o ego e o levou a abandonar suas velhas convicções. Ao contrário, ele soube utilizar deste fato como uma janela de comunicação com o grande público. Saramago usou sua língua para escrever belos romances e para dizer verdades que muitos prefeririam que ficassem na sombra da história. Seu ethos foi superior a mediocridade das indústrias culturais de hoje, mercantis e alienadas.
Sua postura comprova a idéia de que o autor jamais fala sozinho. Ele representa a voz de muitos que gostariam de dizer algo igual ou próximo. Ele era um homem do século XX. Mas, como poucos, percebeu que no século em que iria morrer continuaria a existir coisas a serem ditas. Entendeu que a história seguia seu curso, carregando as heranças do passado e fatos e problemas novos. Todavia, jamais foi um passadista. Contudo, não lhe apeteceram os mitos absurdos recentes do ‘fim da história’, da ‘terceira via’ e do recolhimento dos intelectuais aos seus afazeres específicos.
Saramago falava e falava, morreu dizendo a que veio e, só isso, dignifica para sempre seu percurso vivencial de quase um século. Veio de uma das regiões mais pobres da Europa – Península Ibérica –, que gostaria de ver unificada em um só país, respeitando-se as diferenças regionais. Alcançou o reconhecimento e a notoriedade internacionais, tendo sido publicado em várias línguas. A partir de sua escritura falou com letrados e semiletrados de toda parte. Era amado por muitos e odiado pelos mais conservadores, pelos carolas, anticomunistas profissionais, medíocres invejosos, egocêntricos contumazes e todos os demais tipos de ignorantes irascíveis que existem por aí.
Sua defesa da razão vai continuar incomodando bastante, em um mundo que a nega na sua forma mais pura. Saramago insistiu sempre na possibilidade humana de interpretar e compreender o mundo que envolve a todos. Asseverou que as maiorias podem compreender seus entornos, a si próprias e assumir uma postura mais racional, desde que existam condições para tal. Lembrou, incansavelmente, que destruir esta capacidade natural implicava fazer desmoronar a humanidade da espécie, negar suas culturas, em suma, sua história.
A razão de Saramago está muito distante do uso da mesma como um instrumento do capital, isto é, a razão do lucro e da exploração do homem pelo homem. Ele também foi muito além do racionalismo original, inventado na França do século XVIII. Sua idéia de razão era sensível e esclarecida, desenvolvida na sua condição de romancista e de homem de seu tempo. Jamais separou a razão da emoção, acreditando que ambas podem conviver sem qualquer problema, iluminando-se mutuamente.
O autor, homem de carne e osso, se foi. Ficou sua obra e a lembrança memorável de suas intervenções no mundo da vida. Isto é imortal. Cabe a todos que se deliciavam com sua literatura e com suas aparições públicas não deixarem que a máquina midiática tente apagar o mais importante do que ele legou à humanidade: a luta obstinada pela razão esclarecida.
Luís Carlos Lopes é professor e escritor.
Fonte: Carta Maior
Luís Carlos Lopes
O falecimento de um grande autor como Saramago faz pensar sobre o que é mais importante em sua obra. A afirmação internacional da língua portuguesa como uma língua de cultura salta imediatamente à vista. Os lusofalantes devem a ele a cristalização atual da idéia de que existe um idioma ocidental tão rico como os que hegemonizam a fala e a escrita do tempo presente. O romancista deu visibilidade e prestígio cultural ao seu idioma e de outros mais de duzentos milhões de seres humanos que navegam no mesmo cotidianamente.
O autor teve a felicidade de mostrar que era possível fazer literatura sem abandonar a crítica, isto é, sem escapar do exame da realidade objetiva. Registrou histórias de vida protagonizadas na língua portuguesa. Estas foram sempre universais e, quase sempre, contemporâneas, brindando seus leitores com o exame dos valores e crenças de seu povo. A bem-sucedida transcrição cinematográfica do livro “Ensaio sobre a cegueira”, falado em inglês e ambientado longe de Lisboa, é uma prova da universalidade dos problemas tratados por Saramago.
Os mais diversos percursos do autor estão gravados em seus romances. Neles, também estão, como em qualquer bom autor, suas preocupações políticas e filosóficas. Seu estilo é único, ‘pessoal’, de escrever como se tivesse martelando idéias e situações na cabeça de seus leitores. Sua escrita foi fartamente complementada pelas suas entrevistas e outras aparições públicas sempre serenas, cuidadosas e, não raro, mordazes.
O fato do sistema político-cultural o ter transformado em ‘persona midiática’ não lhe fez crescer o ego e o levou a abandonar suas velhas convicções. Ao contrário, ele soube utilizar deste fato como uma janela de comunicação com o grande público. Saramago usou sua língua para escrever belos romances e para dizer verdades que muitos prefeririam que ficassem na sombra da história. Seu ethos foi superior a mediocridade das indústrias culturais de hoje, mercantis e alienadas.
Sua postura comprova a idéia de que o autor jamais fala sozinho. Ele representa a voz de muitos que gostariam de dizer algo igual ou próximo. Ele era um homem do século XX. Mas, como poucos, percebeu que no século em que iria morrer continuaria a existir coisas a serem ditas. Entendeu que a história seguia seu curso, carregando as heranças do passado e fatos e problemas novos. Todavia, jamais foi um passadista. Contudo, não lhe apeteceram os mitos absurdos recentes do ‘fim da história’, da ‘terceira via’ e do recolhimento dos intelectuais aos seus afazeres específicos.
Saramago falava e falava, morreu dizendo a que veio e, só isso, dignifica para sempre seu percurso vivencial de quase um século. Veio de uma das regiões mais pobres da Europa – Península Ibérica –, que gostaria de ver unificada em um só país, respeitando-se as diferenças regionais. Alcançou o reconhecimento e a notoriedade internacionais, tendo sido publicado em várias línguas. A partir de sua escritura falou com letrados e semiletrados de toda parte. Era amado por muitos e odiado pelos mais conservadores, pelos carolas, anticomunistas profissionais, medíocres invejosos, egocêntricos contumazes e todos os demais tipos de ignorantes irascíveis que existem por aí.
Sua defesa da razão vai continuar incomodando bastante, em um mundo que a nega na sua forma mais pura. Saramago insistiu sempre na possibilidade humana de interpretar e compreender o mundo que envolve a todos. Asseverou que as maiorias podem compreender seus entornos, a si próprias e assumir uma postura mais racional, desde que existam condições para tal. Lembrou, incansavelmente, que destruir esta capacidade natural implicava fazer desmoronar a humanidade da espécie, negar suas culturas, em suma, sua história.
A razão de Saramago está muito distante do uso da mesma como um instrumento do capital, isto é, a razão do lucro e da exploração do homem pelo homem. Ele também foi muito além do racionalismo original, inventado na França do século XVIII. Sua idéia de razão era sensível e esclarecida, desenvolvida na sua condição de romancista e de homem de seu tempo. Jamais separou a razão da emoção, acreditando que ambas podem conviver sem qualquer problema, iluminando-se mutuamente.
O autor, homem de carne e osso, se foi. Ficou sua obra e a lembrança memorável de suas intervenções no mundo da vida. Isto é imortal. Cabe a todos que se deliciavam com sua literatura e com suas aparições públicas não deixarem que a máquina midiática tente apagar o mais importante do que ele legou à humanidade: a luta obstinada pela razão esclarecida.
Luís Carlos Lopes é professor e escritor.
Fonte: Carta Maior
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